Transitoriedade planejada


por: Luís Filipe Pupin Santos, Marina Yuri Suzuki, Miranda Sardenberg Schettert e Victor Hugo Moreira e Faria 

A partir de uma metodologia interseccional de análise socioespacial, aplicada ao contexto urbano da região dos Campos Elíseos, conhecida como Cracolândia, em São Paulo, esta pesquisa tem como objetivo explorar as implicações espaciais da violência conduzida pelo Estado, com foco no cerceamento físico do fluxo exercido pelas forças policiais. Compreender de que forma os corpos presentes nesse território produzem e se apropriam do espaço, desenvolvendo uma prática espacial crítica das mudanças na dinâmica urbana local (configuração e uso do espaço) e das relações espaciais frente à imposição de barreiras físicas. A proposta inclui uma reflexão sobre temas como migração, controle e gestão do território, expressando, por fim, a relação entre seres e espaço construído — turvada pela conexão dessas gentes para com o ambiente e pelas múltiplas realidades que transcendem as fronteiras físicas que as cerceiam.

A metodologia se deu a partir da coleta e cruzamento de dados, documentos oficiais, documentos públicos (links ou trechos escaneados de editais e contratos), recortes e vídeos de operações, dados da SSP-SP, imagens de satélite, cartografias diversas, análises da política urbana, reportagens, materiais de imprensa, entrevistas, registros fotográficos e audiovisuais. O recorte temporal é de 2022 a 2025, com delimitação espacial correspondente à área de concentração do fluxo nesse período.

Para transmitir e ilustrar as transformações e dinâmicas espaciais, desenvolveram-se narrativas visuais a partir de representações gráficas que se aproximam dos espaços centrais à discussão por meio de múltiplas escalas :

Escala Urbana: deslocamento do fluxo.
Escala da Quadra: migrações e deslocamentos forçados.
Escala do Edifício: transformações físicas por meio do estudo de fachadas enquanto limiares espaciais da repressão — rastros de uma violência simultaneamente material e simbólica;
Escala do Objeto: violência materializada.

Adota-se o desenho técnico como abordagem do “arquiteto como etnógrafo”, utilizando o sistema próprio da representação arquitetônica para produzir descrições e tensionar visualmente os dados, ora isolando objetos, ora situando-os no território.

Durante o desenvolvimento do trabalho, surgiram questionamentos quanto à abordagem gráfica, que, diante de um território tão complexo, poderia correr o risco de tornar-se caricata, cínica e distante, caso não fosse conduzida com a devida sensibilidade — o que poderia inclusive reforçar estigmas e contribuir para a estetização da violência e da vulnerabilidade.

Diante disso, buscamos referências bibliográficas e visuais que nos auxiliassem na construção de um produto respeitoso e significativo. Assim, a partir de autores como Didi-Huberman e Aby Warburg e de suas reflexões sobre a imagem, passamos a compreender os deslocamentos do fluxo e as intervenções urbanas não como trajetórias lineares e contínuas, mas como formações em nuvem de um território instável e mutante. A imagem como elemento portador de uma temporalidade simbólica e sensível que, em rede, revela o entrecruzamento de múltiplas migrações — tornando o tempo visível e evidenciando a articulação simbiótica entre espaço e corpos ali presentes.

Inspirados pelo Atlas Mnemosyne de Warburg, concebemos o conjunto dos produtos finais como um infográfico expandido / relatório visual interativo: uma catalogação que combina desenhos técnicos com outras formas de comunicação e representação — manchetes, fotos de apreensões, análises de investimento, estudos temporais de operações policiais — compondo múltiplas camadas de informação visual para uma análise navegável, materializado em uma plataforma digital (site) interativa. A proposta é expor a violência estrutural e cartografar não apenas transformações físicas, mas também a tensão contínua entre corpos, objetos e territórios em disputa. Trata-se de uma aproximação transversal, que permite a exploração associativa e multiescalar dos dados visuais e textuais, possibilitando uma navegação entre diferentes escalas, registros e fontes — construindo uma experiência imersiva e investigativa que amplia as possibilidades de compreensão do território.

No entanto, não se busca criar uma classificação definitiva, mas atribuir legibilidade às relações postas em evidência e coexistindo na mesma superfície, onde se tornem perceptíveis os rastros e ressonâncias entre tempos e espaços. Também, como tratamos de territórios e pessoas reais, partindo de dados concretos, a montagem exige responsabilidade. Apesar da inspiração em associações livres e sem hierarquia fixa, é necessário preservar certa ordem, utilizar legendas e manter vínculos entre os elementos — sob o risco de desinformação e perda de sentido.

As operações do Estado produzem dispersão, repressão, interrupções, apagamentos, rasuras e rastros arquitetônicos e espaciais. O trabalho gráfico adota, portanto, o fragmento, a sobreposição e o deslocamento — de objetos, corpos e barreiras — como métodos para evidenciar a violência estatal, construindo uma representação que rejeita a linearidade e a narrativa totalizante, capaz de interrogar o visível e o invisível da violência espacial. Compreender a “Cracolândia” como espaço urbano criminalizado, produto direto de políticas públicas e elemento estruturante da ação estatal.


Vetores: Movimento

Nesta seção, são apresentados mapas que evidenciam os deslocamentos e tensões espaciais relacionados ao fluxo de usuários de drogas na região central de São Paulo. Através de diferentes escalas — urbana e da quadra —, analisam-se os vetores de movimento forçado, as estratégias de controle territorial e as transformações espaciais promovidas por ações estatais. Esses registros gráficos revelam como o espaço é continuamente reconfigurado pelas disputas entre corpos, objetos, políticas e arquitetura.

Documento elaborado para demonstrar o uso político das operações policiais em curso no território e demonstrar que a permanência da chamada “Cracolândia” está diretamente associada à política urbana do poder público. Com base no mapeamento de operações policiais entre 2022 e 2025, analisa-se o modus operandi das forças de segurança, o uso excessivo da força, as prisões em massa e os impactos territoriais e simbólicos e articulação com grandes projetos urbanos. Revela-se uma atuação ativa baseada em repressão, deslocamentos forçados, remoções e manipulação de dados e indicadores que favorecem a revalorização imobiliária e a higienização social. A sistematização de dados oficiais e registros públicos evidencia os custos humanos, sociais e urbanísticos dessa política, contribuindo para o debate sobre violência institucional, direito à cidade e justiça social.

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CORPO


“O controle já não incide mais sobre as drogas ou os sujeitos, mas sobre os objetos mediadores. A pergunta ‘você está com seu cachimbo aí?’ [...] é reflexo dos processos de objetificação e criminalização. Pessoas coisificadas passam a ser incriminadas por portar coisas que parecem adquirir vida.” (Balera et al., 2023, p. 92) 

“Operação Cachimbo: Relatório das detenções em massa realizadas na Cracolândia”, Núcleo  Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo., 2023